quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O verdadeiro trabalho de Hércules - Parte I

Ali não era favela, apesar de antes assim ser chamado. Era um local pobre, mas urbanizado e limpo. Resolvi o problema com o colega que por ali morava, que se acidentara e eu levei alguns documentos para ele assinar. Descia o morro tranquilamente quando avistei o campinho de futebol. A molecada estava se preparando para um jogo. Colocavam as traves nos buracos próprios, conversavam animados, estavam uniformizados, havia juiz e bandeirinhas, adultos e mais alguns em volta de uma mesa com anotações. Admirei a organização. Sabia que algumas comunidades de bairro levavam a sério seu trabalho e, em áreas de risco como aquela faziam de tudo para que as crianças não desencaminhassem para a criminalidade. O esporte era o melhor caminho para evitar este problema.
O jogo estava para começar, time de camisas vermelhas, com faixa branca, contra o time de camisas verdes. Os calções variavam de cores, bem como, alguns com chuteiras, outros com tênis. Resolvi sentar na pequena arquibancada coberta, que proporcionava sombra agradável naquela tarde de sol. Não havia mais ninguém assistindo o jogo. Minutos antes de o jogo começar um garoto pequeno e magrinho atravessa o campo correndo e senta-se do meu lado.
- O meu time precisa ganhar hoje por vitória simples para se classificar pra final do campeonato aqui do bairro. Meu irmão é o camisa nove. Ele é bom de bola, vai marcar dois gols hoje. – o garotinho dispara a falar sem rodeios – Se a gente não ganhar vamos disputar o terceiro lugar de novo. Ano passado disputamos o terceiro lugar e perdemos. Ah, não!
O jogo tem início, a garotada correndo atrás da bola. O garotinho, magrinho como ele só, observa que estou bem vestido e conclui acertadamente:
- Você não é do bairro... O que você está fazendo por estes lados?
- Tenho um amigo que mora ali perto da caixa-d’água. – ele se descontraiu e eu continuei – Mas, qual é o seu time?
- O de camisa vermelha. Olha lá meu irmão, “dibrou” dois caras... vai, vai... ah, não, perdeu a bola. – levantou-se feito maluco e berrou tão alto que até um dos adultos em volta da mesa do outro lado do campo levantou a cabeça – Segura ele, Chumbinho!!
Chumbinho devia ser o jogador da defesa, camisa três, que parou o contra-ataque com um carrinho. Embora tenha tocado a bola, o jogador adversário caiu e o juiz deu falta.
- Foi na bola! Foi na bola! – a despeito da magreza, o garotinho tinha um vozeirão – Juiz ladrão! Foi na bola!!
- Você não tem medo de xingar o juiz? Ele é daqui do bairro?
- Sim, ele é Presidente da Associação de Moradores. Ele apita quase todos os jogos aqui do bairro e a gente chama ele só de Juiz. Ele é pai do Gabiroba, que joga em outro time. Nenhum jogador xinga ele, porque senão ele dá cartão vermelho e a suspensão é feia, teve uma suspensão de cinco jogos para o Baiacu. Aqui na torcida a gente aproveita e xinga mesmo, porque ele não pode expulsar a torcida. – e o garotinho gargalhou, com um olhar malandro.
No jogo, o defensor Chumbinho cometia outra falta. Desta vez, perigosa, próxima à meia-lua. O adversário preparava-se para bater a falta e o garotinho do meu lado esfregava as mãos nervosamente. O adversário acertou um chute potente e o goleiro não conseguiu defender. Infelizmente, 1x0 para o time das camisas verdes.
- Mas que droga! – o garotinho sentou-se, acabrunhado – O Pantera hoje não está num bom dia.
- Quem é Pantera?
- O nosso goleiro. Logo ele que é bom de defender pênalti, levar um gol de falta bobo desses. Parece até que comeu feijoada no almoço. Nem foi direito na bola.
- Caramba! Todos têm apelidos! Como é o apelido do seu irmão?
- Romarinho. Mas ele é bom mesmo, igual o Romário de verdade, “dibra” muito e faz gols de cabeça, mesmo sendo baixinho. Lá na defesa tem o Meio-quilo, aquele gordo lá. Camisa quatro.
Eu que estava rindo.
- Quem colocou este apelido de Meio-quilo nele?
- Foi o Zé Gambá. – o garotinho estava gargalhando de novo – O Zé um dia estava correndo atrás do Branca de Neve, ali na rua do Bar do Grande, porque o Branca tinha roubado uma bola dele. Só que o Branca pulou o esgoto perto do bar e o Zé, quando foi pular – o garotinho estava gargalhando e falando ao mesmo tempo – caiu dentro do esgoto. Saiu todo sujo de bosta e o pessoal não perdoou mesmo! Começaram a chamar ele de Zé Gambá e o apelido pegou. Ele apelava quando a gente chamava ele de Zé Gambá... – o garotinho ria a não poder mais – Aí a gente chamava mais ainda... Depois ele deixou prá lá.
Eu estava rindo e admirando a loquacidade do garotinho. Como falava!
Ele prestou atenção no jogo, ataque do time de camisas vermelhas, mas o jogador com a bola chutou longe do gol.
- O Latinha devia ter passado a bola para meu irmão. Ele estava livre ali no meio!
Era apelido que não acabava mais... Fiquei curioso e perguntei:
- E como eles te chamam?
- Hércules! – ele respondeu, sorridente.
- Foi o Zé Gambá que te pôs esse apelido?
- Sim, por quê?
- Ele é bastante irônico...
- Iro.. o quê?
- Ele é gozador. Chamou o gordo de Meio-quilo e você, que é magro, de Hércules. Porque ele te apelidou de Hércules?
- Bom, como você sabe eu tenho problemas de falta de ar e não posso nem jogar bola com eles. Mas, eu ajudo carregar as traves e as chuteiras e as camisas. Aí eu andava cabeludo e carregava as traves. Um dia eu cortei o cabelo e quando fui carregar as traves eu passei mal e o Zé Gambá começou a gozação comigo, falando que cortou meu cabelo, cortou minha força, então eu era o Hércules.
Eu ri um bocado. Principalmente do modo do garotinho contar o fato.
- O Zé Gambá pode ser gozador, mas está fazendo confusão com as histórias. Quem era forte porque era cabeludo era o Sansão. Hércules era forte, mas não tinha nada a ver com cabelo.
- Como você sabe disso? – ele perguntou, muito curioso.
- A história de Sansão está na Bíblia, no Livro dos Juízes. Já Hércules é um deus mitológico. Sansão era forte porque não cortava os cabelos, até que um dia Dalila descobriu este segredo e cortou os cabelos dele. Já Hércules é lembrado devido a Os 12 Trabalhos de Hércules.
- Que mulher sacana!! – ele estava rindo muito – O Pastorzinho é que gosta de contar histórias da Bíblia. Ele fica ouvindo o pastor da igreja dele e depois quer que todo mundo acredite nas histórias que ele conta. O Zé Gambá uma vez sacaneou com ele, quando ele disse que Jesus caminhou sobre as águas... – ele começou a rir antes mesmo de terminar o relato – Ele jogou o Pastorzinho no rio e ficou gritando “caminha sobre as águas, Pastorzinho! Tenha fé!!”
Eu não consegui deixar de rir. Esse Zé Gambá era o maior piadista!!
- Olha o ataque do seu time!! – alertei.
E foi um ataque fulminante, com Latinha driblando dois marcadores e desta vez, passando a bola na medida para Romarinho, que chutou forte, de primeira e marcou um golaço. O mais incrível foi a comemoração dos garotos, que correram em direção à arquibancada onde eu estava. Eu até me assustei momentaneamente ao ver a molecada correndo em minha direção. Mas, o garotinho, Hércules, desceu o pequeno desnível da arquibancada e correu até a lateral do campo, onde abraçou os jogadores do time. Após a comemoração, o irmão, Romarinho, trouxe o pequeno Hércules de volta para a arquibancada, abraçados.
- Você viu que golaço o meu irmão marcou? – perguntou o garotinho, todo feliz.
- Sim, eu vi. E vi que o pessoal do time gosta muito de você.
- É que no princípio, quando eu tinha nove anos ainda, eu jogava com eles e também marcava muitos gols, igual meu irmão. Depois eu fui ficando muito doente, muita falta de ar e também fiquei no hospital e fiquei muito magro e o médico falou que eu não podia mais jogar bola com eles.
- Quantos anos você tem agora? E o seu irmão?

- Eu tenho onze e meu irmão tem doze anos.

(continua...) Parte II

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