quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Eu e a religião II

A Irmã G., era séria demais, não me lembro dela sorrindo. Fazia parte do Corpo Diretor do Instituto, o que afastava ainda mais o seu convívio com os alunos. Adentrava a sala com passadas firmes, postava-se diante da mesa dos professores e como um padre celebrando missa, ordenava:
- Levantem-se... - entrelaçava as mãos pouco abaixo do queixo, fechava os olhos e iniciava a oração - Pai Nosso, que estais no céu...
Era estranho que ela rezasse e não se preocupasse com os colegas que não faziam leitura labial e não falavam. 
Terminada a oração, abria o livro de História na página já demarcada e mandava a gente ler:
- Leiam o capítulo e façam os exercícios correspondentes.
E só. Ela nunca explicava nada. Nunca deu uma verdadeira aula de história. Sequer escrevia alguma coisa no quadro. Nunca perguntava se entendemos, se tínhamos alguma dúvida. Se queríamos algum esclarecimento. Permitia que fizéssemos as provas com o auxílio do livro de História. Permitia que eu e o Adão ajudássemos os colegas que não sabiam as respostas. Durante a aula ela ficava lendo um outro livro qualquer, algumas vezes um livro de orações.
A aula de História era essa lerdeza, até que um dia...
- Leiam o capítulo XV e façam os exercícios de 1 a 20.
Era um capítulo que falava de Martinho Lutero, da Reforma Protestante. De como ele divergiu da Igreja Católica, acabando por criar a Igreja Protestante ou Luterana. Eu já estava terminando de ler a maior parte do texto quando a Doralice foi até a Irmã G. com o livro de História aberto. Apontou para uma ilustração de Martinho Lutero e perguntou:
- Quem é ele?
- Ele foi um homem muito ruim! Ele dividiu a Igreja Católica. Ele brigou com o Papa e foi excomungado.  - respondeu a Irmã G., fazendo o sinal de negativo repetidas vezes.
Mas, eu já tinha lido o texto e compreendido algumas partes. E acreditei que, enfim, teríamos aula de verdade.
- Mas, Irmã, Lutero estava certo em não concordar com as indulgências. Um absurdo que a Igreja Católica vendesse um papel dizendo que os pecados estavam perdoados.
Eu não percebi o olhar da Irmã G. e continuei:
- Lutero estava certo ao afirmar que a salvação é pela fé em Jesus Cristo e que Deus nos oferece essa salvação gratuitamente. Discordo que ele não valorize as boas ações. Mas, ele estava certo em ser contra a venda de indulgências e...
- Jairo! - a face da Irmã G. estava rubra.
A sensação foi de que "escutei" o grito da Irmã. Mal conseguia encará-la nos olhos.
O Adão, que sempre me satirizava quando um professor me chamava a atenção, dessa vez estava caladinho, tão assustado quanto eu.
- Termine o seu dever em silêncio.
Martinho Lutero
Nunca mais questionei a Irmã G. Na verdade, se fosse uma boa professora, teria argumentos fortíssimos para contrariar o meu entusiasmo com Lutero. Apesar de grande parte das propostas de Martinho Lutero serem positivas, ele não deseja a divisão da Igreja, somente a reforma. Foi contra a rebelião, foi contra, inclusive, como a insurreição modificou as missas. Sim, ele deu motivos para a divisão, mas não era a favor. E era antissemita, escreveu que a Alemanha deveria ficar livre dos judeus, expulsá-los, despojá-los de dinheiro, jóias, prata e ouro. Ora, isto é justamente o que fizeram os nazistas. A Igreja Luterana não concorda com todos os escritos de Martinho Lutero, principalmente os que ele escreveu sobre os judeus. A Irmã G. poderia ter esclarecido muita coisa naquele momento. Eu era um adolescente, sobre antissemitismo sequer tinha ideia do que fosse.

Só muitos anos depois, já com a idade mais avançada e estudando na E.E. José Bonifácio, com intérprete em sala de aula e excelentes professores, vim a debater novamente sobre História; e a religião na história. O Professor E., professor de História com quem tive bons debates relacionados à matéria.
- A Igreja Católica foi muito importante na formação da sociedade como a vemos hoje.
- O senhor realmente acredita nisso, Professor?
- Porque não, Jairo?
- As fogueiras da Inquisição, as Cruzadas, a Reforma Protestante... matou-se muito em nome de Deus.
- Com o tempo a sociedade passou a separar Religião de Estado. A maioria dos países vive sob regime de estado laico.
Mais informalmente, eu perguntei:
- O senhor acredita que Deus deixou o povo passar por tudo isso para melhorar o mundo?
- Não, Jairo! Dou os créditos para a Igreja Católica e seu papel na História. Mas, eu sou ateu.
Nem a intérprete entendeu, mas eu e o Professor E. gargalhamos muito.

Domingo era dia de descanso. Depois virou dia de visita dos evangélicos. Quando morei em Contagem, o prédio não tinha portaria, o que permitia que entrassem e tocassem a campainha de todos os apartamentos. Minha esposa levantava irritada e abria a porta para as senhoras bem vestidas. Elas começavam a falar e ela não tinha como interrompê-las. Acabava recebendo os folhetos e livretos da igreja, prometendo que iria participar de algum culto, proximamente. Voltava para a cama irritada, não conseguia dormir novamente. Lá se ia a manhã de domingo para um sono mais prolongado.
Um domingo, tocam a campainha e ela vai atender. Pelo olho mágico percebe logo que são outras senhoras evangélicas. Com a insistência (sim, elas não desistem, apertam a campainha até alguém vir atender), minha esposa não tem dúvidas: me acorda e manda eu atender a porta. Eu, quase sempre acordo cedo e portanto, já estava meio acordado.
- Mas, o que... - pergunto.
- As donas evangélicas estão batendo a campainha. Você vai lá e conversa com elas...
- Eu???
- É, é, é... anda, vai logo.
Atendo as senhoras evangélicas, com seus folhetos e convites para culto. Uma delas inicia a palestra de sempre, mas eu a interrompo:
- Sinto muito, senhora, mas eu sou surdo.
Um pequeno momento de silêncio entre todas, mas elas não desistem:
- Você não gostaria de participar de um culto - pergunta uma delas, mostrando o endereço no folheto - na nossa igreja?
- Não, não...
- Ora, você deve receber Jesus em seu coração e...
Eu a interrompo, levantando a mão, num sinal de espere:
- Senhora, sou católico e estou feliz com minha religião. Não pretendo mudar de religião. Não pretendo participar de culto de nenhuma Igreja. - as senhoras ficam mudas e sem graça - Tenham um bom domingo.
Minha esposa, que escutou a conversa do outro lado da porta, riu muito.
E em todos os lugares que moramos, todas as vezes que ela percebia que quem tocava a campainha eram evangélicos, ela dizia, rindo:
- Vá lá falar que você não que participar de culto ....

Certa vez, passando diante de uma igreja evangélica, a moça na porta começa a falar comigo e eu esclareço:
- Desculpe, moça, mas eu sou completamente surdo.
- Tudo bem! - ela falou um pouco mais devagar - Você não quer entrar e conhecer a nossa igreja?
- Ah, não dá não, moça. Eu estou indo para um terreiro de candomblé.
Eu falei brincando, mas a expressão horrorizada da moça, que recuou dois passos, eu nunca esqueci.

Um réveillon eu e alguns colegas surdos fomos em uma igreja evangélica, em um bairro afastado de BH. Fomos por causa de uma amiga ouvinte de um dos colegas, que queria ser intérprete. Eu estava com 22/23 anos. Éramos quatro surdos. Rimos quando percebemos que havia um líquido vermelho numa mesa ao fundo, com alguns salgadinhos. Ficamos nos perguntando se era vinho. O culto foi rápido (Aleluia! Glória a Deus!) e a amiga do nosso colega conversou bastante conosco. O "vinho" era suco de groselha. Horrível. Sem açúcar. O Pastor se aproximou, curioso e mais curioso ainda ficou quando percebeu que eu falava normalmente e que entendia de preceitos religiosos. Os outros colegas estavam concordando em mudar de religião, mas eu não.
- Ora, a Igreja Católica tem o meu maior respeito, - disse o Pastor - mas comete um grande erro com sua adoração aos santos
Falou por alguns minutos, citando passagens bíblicas, com boa argumentação.
Eu disse:
- Eu considero errado adoração a santos, mas em sua maioria, os católicos compreendem muito bem que as imagens apenas representam pessoas que demonstraram uma fé incrível em Jesus e por isso a Igreja Católico considera estas pessoas, os santos, como especiais.
- Mas, a salvação só se dá através do Senhor Jesus.
- Nenhum católico nega isso. Todos sabem que a salvação não se dará crendo em santos e sim, crendo em Jesus. Os santos são exemplos de vida que devemos imitar. O Sr. pode não considerar São Francisco de Assis um santo, mas há de concordar que o amor que ele tinha pelos animais e o seu despojamento da riqueza em favor dos pobres é sim, um exemplo de vida.
A intérprete traduzia a conversação com entusiasmo e chegou a sorrir, ouvindo minha argumentação.
- Numa conversa sem atributos religiosos, Sr. Pastor, o senhor concordaria que Francisco de Assis foi um exemplo admirável de um coração bastante próximo de Jesus?
O Pastor me fitou sorrindo:
- Sim, mas eu não o adoraria.
- Nem eu o adoro, Pastor. Apenas admiro o que ele fez em vida.
O Pastor me abraçou, sorrindo e disse:
- Jairo, você não gostaria mesmo de participar de minha igreja?
- Não, Sr. Pastor. Mas, não vou esquecer a acolhida carinhosa que eu e meus amigos tivemos. Também não vou esquecer o respeito com que o Sr. me tratou.
E acrescentei:
- O senhor não acha que é justamente Jesus que nos une neste momento tão descontraído, independente da igreja que seguimos?

Tenho o maior respeito por todas as religiões. Acredito que, não importa qual religião; todas procuram levá-lo para Deus.

- x.x.x.x.x.x.x.x.x.-

Eu e as religiões III

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