quarta-feira, 29 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - III

Em princípio não foi diagnosticada a meningite, um erro que causou severas complicações no meu viver. A meningite meningocócica é extremamente grave, com alta taxa de mortalidade e deve ser tratada imediatamente. Mas, como já foi dito antes, a ditadura militar impedia uma maior interação entre os médicos. Durante três longos dias fiquei internado sem o tratamento adequado. Foi quando um outro médico tomou conhecimento do meu caso e informou que eu deveria ser transferido imediatamente para Belo Horizonte. Porém, o médico que me atendeu inicialmente não estava na cidade e para esta transferência era necessário a assinatura dele. Minha segunda irmã mais velha foi quem fez uma verdadeira via sacra atrás de documentação e autorização para minha transferência. Em vista da gravidade do meu caso, o Diretor do hospital assinou o documento que permitia a minha saída do hospital. Não havia ambulância e o hospital não se responsabilizou após minha saída. Foram meus familiares que conseguiram dinheiro suficiente para pagar um taxi. Não receberam instruções, não foram informados do perigo de contágio. Aqui em Belo Horizonte fui internado no atualmente Hospital Infantil João Paulo II (antigo Hospital Cícero Ferreira, para tratamento e isolamento de doenças transmissíveis). Com o tratamento adequado, em três ou quatro dias eu recuperei a consciência, mas já surdo, sequela da meningite, devido principalmente à demora no diagnóstico e tratamento correto da doença.
Eu abri os olhos uma primeira vez, ainda muito fraco e com os pensamentos muito confusos. Estava amarrado à cama, com agulhas de soro no braço e uma mangueirinha na boca, que instintivamente sugava leite de um garrafão na mesa ao lado. Somente à noite acordei mais consciente, ainda sugando leite, com os sentidos retornando aos poucos. A visão, o paladar, o tato. E as reações naturais do corpo, como a fome, por exemplo. Foi devido à fome que acabei descobrindo que havia algo errado com minha audição. Eu estava muito fraco e não conseguia sugar o resto de leite do fundo do garrafão, tamanho médio, 5 litros, mais ou menos. Mas, como no momento eu estava desamarrado e com fome, resolvi tombar o garrafão para beber o resto do leite. Estava fraquíssimo e consegui tombar o garrafão, mas não foi possível mantê-lo tombado e ele caiu. Eu não ouvi o barulho do garrafão se quebrando e ninguém surgiu no quarto devido ao barulho (era madrugada). Num primeiro momento pensei que o garrafão fosse de plástico. Mas, eu tinha sentido o contato do vidro. Na beira da cama, fiz um esforço e olhei para o chão. Cacos de vidro para todo lado em meio ao resto do leite. Neste momento tive consciência de que os sons morreram para mim. Descobri então, que o meu mundo estava em silêncio.
No dia seguinte estava tudo limpo e arrumado, a enfermeira chegou e ficou surpresa ao me ver desperto e disse algo entre sorrisos e uma expressão de real felicidade. Anos depois, compreendendo todos os fatos, entendi melhor a expressão de felicidade no rosto da enfermeira: a surpresa por me encontrar acordado indicava que eu entrara no hospital com poucas possibilidades de sobrevivência. Éramos três pacientes no quarto, um outro menino, mais novo que eu, 8 ou 9 anos e um bebê, num berço improvisado no canto. Todos três tomando soro. O bebê também com tubos de oxigênio. Os enfermeiros fizeram a punção lombar no garoto; eu tive o privilégio de assistir deitado na cama ao lado (as agulhas de uns 10 cm sendo inseridas na coluna do garoto eram assustadoras). Foi também o meu primeiro contato com a comunicação através dos sinais. Um enfermeiro falou alguma coisa comigo e eu respondi que não estava escutando. Ele fez o gesto de “você”, apontando para mim e “sua coluna”, apontando para as costas dele mesmo. Eu entendi e toquei minha coluna, onde estava o curativo, pois é claro que ali, com o tratamento correto, eu também tinha feito uma punção lombar. Eu fiz uma expressão de espanto ao constatar o esparadrapo e os enfermeiros (um homem e duas mulheres) riram.
Naquele momento, provavelmente, eles se deram conta de que a meningite havia deixado uma grave sequela, a surdez bilateral profunda e, no meu caso, irreversível.

A meningite (Wikipédia)


Um comentário:

  1. Exatamente como aconteceu com um sobrinho meu, surdo mudo até hoje, chama-se Evaldo Ribeiro e mora em Goiás

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