sexta-feira, 27 de julho de 2012

A arte de fazer arte - I

Minha sala no Instituto Santa Inês ainda tinha resquícios da época em que o ensino para os surdos era focalizado na oralização. As carteiras ainda tinham os fones de ouvido (enormes, iguais aos de radialistas) guardados em seu interior e no exterior os diversos comandos de som, volume e microfone. Inclusive, numa sala do segundo andar o equipamento estava conservado. Uma vez tivemos uma aula de português lá, com a professora colocando uma música para “ouvirmos” e depois interpretarmos o texto. Afora o Adão, que ouvia acima da média, os demais não gostaram da aula. A professora fez uma pesquisa para verficiar se gostaríamos de repetir a aula lá e a resposta foi “não”, com um único “sim”, do Adão, claro. Eu ainda expliquei que tudo que ouvia era um “bzzzzz, bzzzzz” na cabeça e mais incomodava que ajudava.
Na nossa sala, o equipamento não funcionava mais e só servia para eu e o Adão fazermos nossas brincadeiras, ora “narrando um jogo pela rádio” ou falando um para o outro, com os enormes fones nos ouvidos, e perguntando entre gargalhadas:
- Tá escutando?
Ou:
- Vamos ouvir a música do Roberto Carlos, Amada Amante, em homenagem ao meu amigo Adão. – e mexia nos comandos na mesa e começava a cantar a música (que eu já ouvi e conheço).
O Adão, que tinha perda auditiva baixa, ouvia o suficiente para comprrender muita coisa. Ele ouvia, inclusive, rádio (surdos que “ouvem” a tv têm a ajuda das imagens e fazem a leitura labial para acompanhar)
- E para o Jairo vai a música, também de Roberto Carlos, Meu Pequeno Cachoeiro. – isto porque eu vivia falando de Formiga. Ele me zoava com essa música cantando Formiga ao invés de Cachoeiro.
Na hora do recreio eu eo Adão ficávamos na sala brincando com o equipamento. Dois colegas de outras séries, Carlos e Wilton, descobriram nossa brincadeira, e ficavam a nos observar. O Wilton ficou curioso e quis saber o que era na verdade todo aquele equipamento. Naquela época eu não sabia muito bem e expliquei da aula no segundo andar. O Wilton então tentou ligar um dos fones na mesa do professor, que também tinha os equipamentos e um microfone. Eu e o Adão rimos e eu disse:
- Você não está vendo que toda a fiação está cortada?
- Sei. Mas, de onde ela vem?
- Da caixinha aí na parede.
Ele foi para a caixinha, paramentado com o enorme fone de ouvido e tentou encaixar o cabo de entrada do fone em algum lugar.
Eu ri:
- Mas você quer ouvir o que, ô, Wilton? Não tem nada produzindo som e ninguém falando em microfones.
O Adão avacalha:
- Ele espera ouvir os sinais extraterrestres.
Estávamos às gargalhadas quando o Wilton resolve mexer na fiação. O estouro que ocorreu quase derruba eu e o Adão das cadeiras, assustados. O Carlos pulou para fora da sala apontando para o Wilton e fazendo top top top. Eu, o Adão e o Wilton também saímos correndo da sala para o corredor. Quatro surdos correndo de barulho.
Quase no final do corredor, da sala da Diretoria, já saía uma Irmã, assustada, em nossa direção.
- Jairo e Adão, o que vocês estão aprontando agora?
Como sempre, sobrava para nós. Mas o Adão respondeu:
- Nós não fizemos nada. Quem estava mexendo na fiação era o Wilton.
Todos olhamos para o Wilton e rimos:
- Tira esse fone dos ouvidos, cara! Viu o que dá mexer em fiação antiga!
Com a Irmã à frente, voltamos para a sala. Não havia fogo, nem cheiro de queimado. A Irmã começou a xingar eu e o Adão.
- Vocês ficam brincando com os aparelhos e...
- Ah, não, Irmã. Foi o Wilton que mexeu na caixa na parede. Porque a fiação das carteiras não tem ligação com nada, os fios estão cortados. – não precisava ser um gênio da eletricidade para ver e saber disso.
Ela concordou, mas tempos depois as carteiras com aparelhagem foram retiradas da nossa sala.

A arte de fazer arte - II

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